Ética Cristã
A distinção entre a moral e ética nos lembra das dimensões do labor
ético: teoria e prática [..], toda prática implica uma teoria, e vice-versa
(MAY,2008, p.19). Somente a unidade das duas dimensões garante uma praxis
responsável.
A praxis, é uma previa, de um pensamento, pressupõe uma ação
previamente elaborada, crítica em seguida de uma ação consequente.
A prática é diferente, muitas das vezes é fruto de uma ação bem
pensada.
Uma das questões mais complexas
do mundo científico, teológico e filosófico contemporâneo é oferecer uma boa
compreensão do significado preciso de palavras como eu, sujeito, subjetividade,
pessoa etc...
Em nossa perspectiva consideramos
o sujeito um aspecto fundamental para que possamos pensar e falar em ética. A ética implica um sujeito que possa
assumir a responsabilidade por atos praticados (seja ele pessoal,
comunitário, institucional, ou outro) diante de outros.
O discurso ético afirma que somos livres e responsáveis e assumimos
em nós mesmos o ato ético e suas conseqüências enquanto ações significativas.
Por outro lado, como cristãos, perguntamos até que ponto podemos ser éticos,
livres e responsáveis, numa estrutura de pecado e com a constituição de
sujeitos dentro dessa estrutura. Nossa abordagem do tema será feita a partir de
três perguntas-tema: 1. Como se constitui o sujeito? 2. Como se forma o sujeito
ético? 3. Como se forma o sujeito ético
cristão?
Propomos uma breve descrição da
experiência de “ser sujeito” (acompanhada de indicações dadas pela análise
genético/generativa da manifestação do sujeito) como pano de fundo
interpretativo de nós mesmos. Usamos o método enomenológico de Husserl e
descartamos qualquer explicação prévia, filosófica ou científica. A nossa
experiência humana não é vista como confinada aos processos definidos como
natureza, nem a vida humana pode ser confinada à fisiologia, por exemplo. Isso
indica a distância que mantemos do chamado naturalismo científico. A abordagem
originária do ser humano nunca é “científica” no sentido de objetivismo
factual; mais que natureza, somos também cultura e a sociedade é também nossa
convivência cotidiana, é corpo e também é uma abrangência de nosso ser humano
como um todo. O conhecimento não se produz do sujeito para seu entorno, nem do
seu entorno para o sujeito, é uma integração com a vida. A experiência de ser
sujeito é ampliada no sentido de abarcar a vida, integrando vida e
subjetividade, subjetividade e vida. Na correlação2 sujeito e vida afirmamos a
superação de todo dualismo sujeito/objeto desenvolvido a partir da ciência
moderna (especialmente depois de Descartes).
Como se constitui o sujeito? Gênese
do sujeito
Quando fazemos a pergunta “quem
somos nós?”, temos a tendência de tentar respondê-la a partir da reflexão sobre
nós mesmos. Isso é uma grande ilusão. Essa pergunta só pode ser respondida a
partir de nossos relacionamentos com os outros. Sem o outro não somos nada.
Nossa constituição tem o ponto focal na presença do outro. Nascemos da vida dos
outros fisiologicamente, psicologicamente, culturalmente, e mesmo
religiosamente (no cristianismo isso é claro se atentamos para as expressões de
Cristo ou de Paulo que nos vêem como seres de relação com o próximo e com
Deus).
Há muitos estudos sobre as etapas
do desenvolvimento humano. Quase todos partem do princípio que o
desenvolvimento é um processo de unidade da pessoa e seu entorno. Quase todos
apontam a grande distância entre o que fomos quando criança e o que somos como
adultos. A unidade é atribuída a constâncias biológicas, psicológicas,
sociológicas, culturais.
Nossa abordagem desloca o centro
formador não para o exterior, mas para a correlação entre o que o outro nos
aporta e nossa capacidade de responder, responsividade que se revela desde a
nossa mais remota formação como bebê ou mesmo na condição de feto. Se para o bebê não houver as condições
necessárias relacionais e como entorno de ser humano, especialmente outras
pessoas, o ser humano não emerge em suas condições essenciais. Ser pessoa, ser
livre, transcender o tempo e espaço, utilizar a linguagem, são condições que
não se desenvolvem por si. O desenvolvimento está condicionado à presença de
outros.
O “eu” não se desenvolve pelo crescimento físico, mesmo que dependa
de uma base fisiológica para que isso seja possível. O eu não é uma substância.
O sujeito acontece: ele é e existe em atos, e ele se forma e se revela em
eventos, e se dá conta de si por se auto-reconhecer em atos. O sujeito se forma
e se revela na relação de alteridade. O
sujeito é constituído como evento, ele acontece na trama que se estabelece em
relação com outros seres humanos (mãe, família, grupos humanos) e como resposta
a eventos: o “eu” provém das respostas a outro/a.
O sujeito autônomo emerge de modo relativo e descontinuamente, isto
é, o sujeito autônomo não é uma constante linear sem interrupções. A vida
testemunha muitas situações em que não podemos pressupor o sujeito como
plenamente autônomo: uma simples febre pode aniquilar ou limitar a autonomia de
um sujeito. O sujeito é uma constituição que acontece em torno de eventos
relacionais e respostas a esses eventos. Somos interpelados na convivência
desde a mais tenra idade e nos formamos como respondentes.
Viemos dos outros e geramos
outros fisiologicamente, culturalmente, socialmente, espiritualmente... O
caminho da autonomia é, paradoxalmente, outrodependente. O ser humano não nasce
“naturalmente”, por assim dizer. O ser humano acontece na dimensão intersubjetiva
da vida humana e na dialética da interpelação e reposta, como caminho para
atingir a autonomia ética.
2. Como se constitui o sujeito ético?
Vimos que o sujeito ético é uma
autonomia alcançada através da alteridade. Nele o acontecimento é um e-vento
(no sentido de que ele vem a nós e nos interpela). A decisão ou atitude ética é
um modo de ser humano na vida concreta entre pessoas. O sujeito ético é parte
de uma humanidade social em que se constitui como indivíduo a partir dela e por
refleti-la.
O sujeito ético, na trama dialógica da interpelação e da resposta,
encontra um mundo de validades éticas e é impelido a agir em consonância com
essas validades específicas. É a atitude e o comportamento face às validades
que agregam valor ético à ação: a ação pode ser boa ou má. É na medida em que respondo por essas validades que me torno sujeito
responsável eticamente.
As validades éticas são reconhecidas no outro, na natureza, na
sociedade, no trabalho, nas instituições, no cotidiano, em situações limites
etc. O sujeito ético age, de modo geral, em relação às possibilidades que tem
de sustentar e encarnar valores que são reconhecidos e hierarquizados.
O sujeito ético avalia a partir de um mundo com universalidade
abrangente e a partir de muitos mundos particulares possíveis. Essa dialética
entre um mundo e muitos mundos em correlação é um dos avanços fundamentais
proporcionados por Husserl em sua análise do mundo da vida (Lebenswelt). A
ética pode ser vista, ao mesmo tempo, como a correlação entre a unidade de um
mundo e a pluralidade dos muitos mundos culturais e pessoais possíveis.
3. Como se constitui o sujeito ético cristão?
O sujeito ético cristão também
deve ser visto como envolvido numa trama de interpelação e resposta, mas que na
sua especificidade possui fundamento na narrativa bíblica.
Para Buber, a Bíblia é um grande
diálogo. É nessa dialética de interpelação e de resposta que muitos estudiosos
da Bíblia, como Von Rad, Zimmerli, Westermann, entre outros, encontram a chave
de interpretação da meta-narrativa bíblica. É também nesse horizonte que
podemos ver no Novo Testamento a interpelação-chave em Jesus Cristo.
A narrativa bíblica é um dos textos fundamentais da cultura ocidental
junto com a filosofia grega. Nossa identidade cultural já é – ainda que
parcialmente e independentemente de nossa vontade – meio grega, meio judaica.
Quando falamos, é a pessoa como
um todo que fala, e fala ao mesmo tempo de um ego localizado, mas cuja
constituição de identidade alcança a essência de si mesmo em suas raízes
transcendentais. Unidade, articularidade, universalidade são afeitos da compatibilidade
do sujeito.
A narrativa bíblica, por outro
lado, possui uma interpelação que contrasta dois aspectos da responsabilidade
humana: Sua grandeza e potencialidade,
enquanto se revela como imagem de Deus nessa responsividade; Sua baixeza e deterioração, enquanto
responsividade capaz de negar a Deus, negar a realidade dos valores originários
e criar relações identitárias de pecado (como, por exemplo, de dominação, de
idolatria etc.).
Em termos de narratividade bíblica, Deus é o Juiz e Senhor absoluto dos valores
originários.6 Na ética bíblica e teológica nos perguntamos se ainda é possível
falar de ética em um mundo estruturalmente marcado pelo pecado.
As relações identitárias de pecado formam uma rede de articulações que
pode ser reconhecida na cultura, na vida cotidiana, no mundo político, no mundo
econômico, no mundo religioso. A cultura como um todo, a vida, a política, a
economia, a religião não são em si mesmas idólatras e opressoras. Mas, são
contribuições sociais que podem servir de terreno para relações de dissipação
da vida humana em oposição aos valores fundamentais.
A Máquina Global encarna um índice de malignidade, mas não é em si
mesma a maldade. O importante é percebermos que a maldade e o pecado pessoal
não se constituem num vazio. Antes, trata-se de um processo em que o pecado
constitui uma forma dinâmica de relações entre pessoas e entre as relações
institucionalizadas. Os efeitos benéficos e maléficos da Máquina Global possuem
a sua expressão mais viva no mercado, sua formação que desemboca nas estruturas
da vida cotidiana
A máquina é alimentada pelos atos e intenções humanas; mas,
ela adquire uma certa autonomia e passa a produzir efeitos, previstos e
imprevistos, altamente destrutivos e alienantes para a condição humana. A força
dessa Máquina Global é potenciada pela sua própria malignidade capaz de fazer o
bem parecer mal e o mal parecer bem. Podemos representar Máquina Global assim:
A ética cristã não pode ignorar que no centro da estruturação da vida
cotidiana opera uma estrutura de pecado, uma estrutura de dominação, uma
estrutura amor ágape. A ética e o
sujeito cristãos só se formam no ambiente da gratuidade divina. Este ambiente
tem a Cristo no centro, como fundação, e o próximo como referência.
O sujeito ético cristão conforma a experiência cristã não apenas como
indivíduo. Essa experiência encontra sua expressão mais plena e mais
significativa eticamente como sujeito ético eclesial. Em outras palavras, a
experiência cristã deve ser assumida como experiência com o outro e, em sua
melhor expressão, como experiência de uma eclesialidade
de pessoas vocacionadas a
respostas concretas diante do próximo. O ser respondente se transmuta em
comunidade respondente a Deus e ao mundo, como resposta à vocação comunitária e
social do corpo de Cristo. Essa comunidade responde à ação de Deus no mundo e
ao próximo, com quem Jesus Cristo se identificou. Devemos ser, enquanto somos
comunidade cristã, comunidade respondente ao Deus Criador, ao Deus Juiz e
Governador, e ao Deus Redentor.
Conclusão
A consciência individual não é um
mito, como afirmam alguns autores. Porém, devemos conceder que a constituição
do sujeito, especialmente da consciência individual, tem uma teia social de
correspondências e de reciprocidades. A emergência do sujeito ético é também um
acontecimento tardio em relação à infância, pois a autonomia reflexiva e a
afirmação da ação subjetivamente responsável é uma conquista que exige tempo e
amadurecimento. De qualquer modo, fica claro que uma consciência autônoma por
si mesma, sem a participação de outros sujeitos e da cultura, isso sim podemos
dizer que é um mito. Na maioria dos casos podemos falar de co-responsabilidade
e não apenas de responsabilidade individual. A grande tarefa da ética não se
reduz às condições de responsabilidade individual, mas à criação de uma
sociedade responsável. Em termos de ética cristã devemos pensá-la como ética
eclesiológica e da responsabilidade da Igreja como corpo e como comunidades
espalhadas pelo mundo. Dessas evidências devemos tirar as conseqüências para
uma ética da res
ponsabilidade dos sujeitos éticos
individuais e sociais, ambos socialmente constituídos, ainda que o endivíduo
possa ser diferenciado e, portanto, com um sentido de autonomia mais definida.
Referências Bibliográficas
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo, SP: Editora Moraes, 1982.
DIAZ, Carlos. El sujeto ético.
Madrid: Narcea, 1983.
DUSSEL, Enrique. Lecciones de introducción a
la filosofia ò antropologia filosófica. Mendonza, 1968. (Edição onlines: <
http://www.ifil.org/Biblioteca/dus sel/html/02.html >. MEAD, George Herbert. Mind, Self, and
Society: From the Standpoint of a Social Behaviorist. Edited by Charles W.
Morris, Chicago: University of Chicago 1934. Edição online: <
http://www.brocku.ca/MeadProje ct/Mead/pubs2/mindself/Mead_1 934_toc.html >.
NIEBUHR, Helmut Richard. The Responsible Self: An essay in Christian Moral
Philosophy. Luisville, Kentucky: Westminster John Knox Press, 1999 (Original:
Joanna Cotler Books – 1963).
NIEBUHR, Reinhold. The Self and
the Dramas of history. New York: University Press of America, 1988 [Charles
Scribner’s Sons 1955].
RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Trad.
De Lucy Moreira César. Campinas: Papirus, 1991. _____ . Tempo e Narrativa.
Campinas: Papirus, 1994.
ROGERS, Isabel Wood. In Response
to God. How Christians Make Ethical
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente e Faça sugestões, sobre este Blogger Obrigado !
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.