20 de jun. de 2024

Ética Cristã


 Ética Cristã

 A ética é a reflexão crítica e auto crítica, sobre as bases, os objetivos, os limites, o potencial dessa moral  ou outras morais. Para podermos ser éticos , precisamos pensar, analisar, avaliar, relacionar, discutir e propor. A Ética tem como propósito principal contribuir para sobrevivência em dignidade, de pessoas, de grupos, de nações, enfim, de toda humanidade e criação. Muitas vezes, sentimos a abrangência das nossas responsabilidades em escala bem mais restrita, inclusive na igreja.

A distinção entre a moral e ética nos lembra das dimensões do labor ético: teoria e prática [..], toda prática implica uma teoria, e vice-versa (MAY,2008, p.19). Somente a unidade das duas dimensões garante uma praxis responsável.

A praxis, é uma previa, de um pensamento, pressupõe uma ação previamente elaborada, crítica em seguida de uma ação consequente.

A prática é diferente, muitas das vezes é fruto de uma ação bem pensada.

Uma das questões mais complexas do mundo científico, teológico e filosófico contemporâneo é oferecer uma boa compreensão do significado preciso de palavras como eu, sujeito, subjetividade, pessoa etc...

Em nossa perspectiva consideramos o sujeito um aspecto fundamental para que possamos pensar e falar em ética. A ética implica um sujeito que possa assumir a responsabilidade por atos praticados (seja ele pessoal, comunitário, institucional, ou outro) diante de outros.

O discurso ético afirma que somos livres e responsáveis e assumimos em nós mesmos o ato ético e suas conseqüências enquanto ações significativas. Por outro lado, como cristãos, perguntamos até que ponto podemos ser éticos, livres e responsáveis, numa estrutura de pecado e com a constituição de sujeitos dentro dessa estrutura. Nossa abordagem do tema será feita a partir de três perguntas-tema: 1. Como se constitui o sujeito? 2. Como se forma o sujeito ético? 3. Como se forma o sujeito ético cristão?

Propomos uma breve descrição da experiência de “ser sujeito” (acompanhada de indicações dadas pela análise genético/generativa da manifestação do sujeito) como pano de fundo interpretativo de nós mesmos. Usamos o método enomenológico de Husserl e descartamos qualquer explicação prévia, filosófica ou científica. A nossa experiência humana não é vista como confinada aos processos definidos como natureza, nem a vida humana pode ser confinada à fisiologia, por exemplo. Isso indica a distância que mantemos do chamado naturalismo científico. A abordagem originária do ser humano nunca é “científica” no sentido de objetivismo factual; mais que natureza, somos também cultura e a sociedade é também nossa convivência cotidiana, é corpo e também é uma abrangência de nosso ser humano como um todo. O conhecimento não se produz do sujeito para seu entorno, nem do seu entorno para o sujeito, é uma integração com a vida. A experiência de ser sujeito é ampliada no sentido de abarcar a vida, integrando vida e subjetividade, subjetividade e vida. Na correlação2 sujeito e vida afirmamos a superação de todo dualismo sujeito/objeto desenvolvido a partir da ciência moderna (especialmente depois de Descartes).

  

Como se constitui o sujeito? Gênese do sujeito

Quando fazemos a pergunta “quem somos nós?”, temos a tendência de tentar respondê-la a partir da reflexão sobre nós mesmos. Isso é uma grande ilusão. Essa pergunta só pode ser respondida a partir de nossos relacionamentos com os outros. Sem o outro não somos nada. Nossa constituição tem o ponto focal na presença do outro. Nascemos da vida dos outros fisiologicamente, psicologicamente, culturalmente, e mesmo religiosamente (no cristianismo isso é claro se atentamos para as expressões de Cristo ou de Paulo que nos vêem como seres de relação com o próximo e com Deus).

Há muitos estudos sobre as etapas do desenvolvimento humano. Quase todos partem do princípio que o desenvolvimento é um processo de unidade da pessoa e seu entorno. Quase todos apontam a grande distância entre o que fomos quando criança e o que somos como adultos. A unidade é atribuída a constâncias biológicas, psicológicas, sociológicas, culturais.

Nossa abordagem desloca o centro formador não para o exterior, mas para a correlação entre o que o outro nos aporta e nossa capacidade de responder, responsividade que se revela desde a nossa mais remota formação como bebê ou mesmo na condição de feto.  Se para o bebê não houver as condições necessárias relacionais e como entorno de ser humano, especialmente outras pessoas, o ser humano não emerge em suas condições essenciais. Ser pessoa, ser livre, transcender o tempo e espaço, utilizar a linguagem, são condições que não se desenvolvem por si. O desenvolvimento está condicionado à presença de outros.

O “eu” não se desenvolve pelo crescimento físico, mesmo que dependa de uma base fisiológica para que isso seja possível. O eu não é uma substância. O sujeito acontece: ele é e existe em atos, e ele se forma e se revela em eventos, e se dá conta de si por se auto-reconhecer em atos. O sujeito se forma e se revela na relação de alteridade.  O sujeito é constituído como evento, ele acontece na trama que se estabelece em relação com outros seres humanos (mãe, família, grupos humanos) e como resposta a eventos: o “eu” provém das respostas a outro/a.

O sujeito autônomo emerge de modo relativo e descontinuamente, isto é, o sujeito autônomo não é uma constante linear sem interrupções. A vida testemunha muitas situações em que não podemos pressupor o sujeito como plenamente autônomo: uma simples febre pode aniquilar ou limitar a autonomia de um sujeito. O sujeito é uma constituição que acontece em torno de eventos relacionais e respostas a esses eventos. Somos interpelados na convivência desde a mais tenra idade e nos formamos como respondentes.

Viemos dos outros e geramos outros fisiologicamente, culturalmente, socialmente, espiritualmente... O caminho da autonomia é, paradoxalmente, outrodependente. O ser humano não nasce “naturalmente”, por assim dizer. O ser humano acontece na dimensão intersubjetiva da vida humana e na dialética da interpelação e reposta, como caminho para atingir a autonomia ética.

2. Como se constitui o sujeito ético?

Vimos que o sujeito ético é uma autonomia alcançada através da alteridade. Nele o acontecimento é um e-vento (no sentido de que ele vem a nós e nos interpela). A decisão ou atitude ética é um modo de ser humano na vida concreta entre pessoas. O sujeito ético é parte de uma humanidade social em que se constitui como indivíduo a partir dela e por refleti-la.

O sujeito ético, na trama dialógica da interpelação e da resposta, encontra um mundo de validades éticas e é impelido a agir em consonância com essas validades específicas. É a atitude e o comportamento face às validades que agregam valor ético à ação: a ação pode ser boa ou má. É na medida em que respondo por essas validades que me torno sujeito responsável eticamente.

As validades éticas são reconhecidas no outro, na natureza, na sociedade, no trabalho, nas instituições, no cotidiano, em situações limites etc. O sujeito ético age, de modo geral, em relação às possibilidades que tem de sustentar e encarnar valores que são reconhecidos e hierarquizados.

O sujeito ético avalia a partir de um mundo com universalidade abrangente e a partir de muitos mundos particulares possíveis. Essa dialética entre um mundo e muitos mundos em correlação é um dos avanços fundamentais proporcionados por Husserl em sua análise do mundo da vida (Lebenswelt). A ética pode ser vista, ao mesmo tempo, como a correlação entre a unidade de um mundo e a pluralidade dos muitos mundos culturais e pessoais possíveis.

3. Como se constitui o sujeito ético cristão?

O sujeito ético cristão também deve ser visto como envolvido numa trama de interpelação e resposta, mas que na sua especificidade possui fundamento na narrativa bíblica.

Para Buber, a Bíblia é um grande diálogo. É nessa dialética de interpelação e de resposta que muitos estudiosos da Bíblia, como Von Rad, Zimmerli, Westermann, entre outros, encontram a chave de interpretação da meta-narrativa bíblica. É também nesse horizonte que podemos ver no Novo Testamento a interpelação-chave em Jesus Cristo.

A narrativa bíblica é um dos textos fundamentais da cultura ocidental junto com a filosofia grega. Nossa identidade cultural já é – ainda que parcialmente e independentemente de nossa vontade – meio grega, meio judaica.

Quando falamos, é a pessoa como um todo que fala, e fala ao mesmo tempo de um ego localizado, mas cuja constituição de identidade alcança a essência de si mesmo em suas raízes transcendentais. Unidade, articularidade, universalidade são afeitos da compatibilidade do sujeito.

A narrativa bíblica, por outro lado, possui uma interpelação que contrasta dois aspectos da responsabilidade humana:  Sua grandeza e potencialidade, enquanto se revela como imagem de Deus nessa responsividade;  Sua baixeza e deterioração, enquanto responsividade capaz de negar a Deus, negar a realidade dos valores originários e criar relações identitárias de pecado (como, por exemplo, de dominação, de idolatria etc.).

Em termos de narratividade bíblica, Deus é o Juiz e Senhor absoluto dos valores originários.6 Na ética bíblica e teológica nos perguntamos se ainda é possível falar de ética em um mundo estruturalmente marcado pelo pecado.

As relações identitárias de pecado formam uma rede de articulações que pode ser reconhecida na cultura, na vida cotidiana, no mundo político, no mundo econômico, no mundo religioso. A cultura como um todo, a vida, a política, a economia, a religião não são em si mesmas idólatras e opressoras. Mas, são contribuições sociais que podem servir de terreno para relações de dissipação da vida humana em oposição aos valores fundamentais.

A Máquina Global encarna um índice de malignidade, mas não é em si mesma a maldade. O importante é percebermos que a maldade e o pecado pessoal não se constituem num vazio. Antes, trata-se de um processo em que o pecado constitui uma forma dinâmica de relações entre pessoas e entre as relações institucionalizadas. Os efeitos benéficos e maléficos da Máquina Global possuem a sua expressão mais viva no mercado, sua formação que desemboca nas estruturas da vida cotidiana

A máquina é alimentada pelos atos e intenções humanas; mas, ela adquire uma certa autonomia e passa a produzir efeitos, previstos e imprevistos, altamente destrutivos e alienantes para a condição humana. A força dessa Máquina Global é potenciada pela sua própria malignidade capaz de fazer o bem parecer mal e o mal parecer bem. Podemos representar Máquina Global assim:

 A constituição do sujeito em geral, ou a constituição do sujeito ético, ou, ainda mais especificamente, a constituição do sujeito ético cristão é dada com a constituição do mundo que nos unem a todos e dos diferentes mundos nos quais nós vivemos. Essa constituição do mundo que nos une a todos e a constituição dos diferentes mundos acontece na seqüência de eventos em que o sujeito é responsivo e deve ser progressivamente responsável

A ética cristã não pode ignorar que no centro da estruturação da vida cotidiana opera uma estrutura de pecado, uma estrutura de dominação, uma estrutura amor ágape.  A ética e o sujeito cristãos só se formam no ambiente da gratuidade divina. Este ambiente tem a Cristo no centro, como fundação, e o próximo como referência.

O sujeito ético cristão conforma a experiência cristã não apenas como indivíduo. Essa experiência encontra sua expressão mais plena e mais significativa eticamente como sujeito ético eclesial. Em outras palavras, a experiência cristã deve ser assumida como experiência com o outro e, em sua melhor expressão, como experiência de uma eclesialidade

de pessoas vocacionadas a respostas concretas diante do próximo. O ser respondente se transmuta em comunidade respondente a Deus e ao mundo, como resposta à vocação comunitária e social do corpo de Cristo. Essa comunidade responde à ação de Deus no mundo e ao próximo, com quem Jesus Cristo se identificou. Devemos ser, enquanto somos comunidade cristã, comunidade respondente ao Deus Criador, ao Deus Juiz e Governador, e ao Deus Redentor.  

 

Conclusão

A consciência individual não é um mito, como afirmam alguns autores. Porém, devemos conceder que a constituição do sujeito, especialmente da consciência individual, tem uma teia social de correspondências e de reciprocidades. A emergência do sujeito ético é também um acontecimento tardio em relação à infância, pois a autonomia reflexiva e a afirmação da ação subjetivamente responsável é uma conquista que exige tempo e amadurecimento. De qualquer modo, fica claro que uma consciência autônoma por si mesma, sem a participação de outros sujeitos e da cultura, isso sim podemos dizer que é um mito. Na maioria dos casos podemos falar de co-responsabilidade e não apenas de responsabilidade individual. A grande tarefa da ética não se reduz às condições de responsabilidade individual, mas à criação de uma sociedade responsável. Em termos de ética cristã devemos pensá-la como ética eclesiológica e da responsabilidade da Igreja como corpo e como comunidades espalhadas pelo mundo. Dessas evidências devemos tirar as conseqüências para uma ética da res

ponsabilidade dos sujeitos éticos individuais e sociais, ambos socialmente constituídos, ainda que o endivíduo possa ser diferenciado e, portanto, com um sentido de autonomia mais definida.

 Fonte autor (Rui de Souza Josgrilberg)

 

Referências Bibliográficas

 AGOSTINHO. Confissões. Trad. de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paul, SP: Paulinas, 1984.

BUBER, Martin.  Eu e Tu. São Paulo, SP: Editora Moraes, 1982.

DIAZ, Carlos. El sujeto ético. Madrid: Narcea, 1983.

 DUSSEL, Enrique. Lecciones de introducción a la filosofia ò antropologia filosófica. Mendonza, 1968. (Edição onlines: < http://www.ifil.org/Biblioteca/dus sel/html/02.html >.  MEAD, George Herbert. Mind, Self, and Society: From the Standpoint of a Social Behaviorist. Edited by Charles W. Morris, Chicago: University of Chicago 1934. Edição online: < http://www.brocku.ca/MeadProje ct/Mead/pubs2/mindself/Mead_1 934_toc.html >. NIEBUHR, Helmut Richard. The Responsible Self: An essay in Christian Moral Philosophy. Luisville, Kentucky: Westminster John Knox Press, 1999 (Original: Joanna Cotler Books – 1963). 

NIEBUHR, Reinhold. The Self and the Dramas of history. New York: University Press of America, 1988 [Charles Scribner’s Sons 1955].

 RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Trad. De Lucy Moreira César. Campinas: Papirus, 1991. _____ . Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994.

ROGERS, Isabel Wood. In Response to God. How Christians Make Ethical

 

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